Raduan Nassar, Lavoura arcaica, capítulo IX
sexta-feira, 1 de maio de 2009
que rostos mais coalhados, nossos rostos adolescentes em volta daquela mesa: o pai à cabeceira, o relógio das paredes às suas costas, cada palavra sua ponderada pelo pêndulo, e nada naqueles tempos nos distraindo tanto como os sinos graves marcando as horas: "O tempo é o maior tesouro que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida q o conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem fim; é um pomo exótico que não pode ser repartido, podendo entretanto prover igualmente a todo mundo; onipresente, o tempo está em tudo; existe tempo, por exemplo, nesta mesa antiga: existiu primeiro uma terra propícia, existiu depois uma árvore secular feita de anos sossegados, e existiu finalmente uma prancha nodosa e dura trabalhada pelas mãos de um artesão por dia após dia; existe tempo nas cadeiras onde nos sentamos, nos outros móveis da família, nas paredes da nossa casa, na água que bebemos, na terra q fecunda, na semente que germina, nos frutos que colhemos, no pão em cima da mesa, na massa fértil dos nossos corpos, na luz que nos ilumina, nas coisas q nos passam pela cabeça, no pó q dissemina, assim como em tudo o que nos rodeia; rico não é o homem que coleciona e se pesa no amontoado de moedas, e nem aquele, devasso, que se estende, mãos e braços, em terras largas; rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não irritando a sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoriapara receber dele os os favores e não sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é; por isso, nunguém em nossa casa há de dar nunca o passo mais largo que a perna: dar o passo mais largo que a perna é o mesmo que suprimir o tempo necessário à nossa iniciativa; e ninguém em nossa casa há de colocar nunca o carro à frente dos bois: colocar o carro à frente dos bois é o mesmo que retirar a quantidade de tempo q um empreendimento exige; e ninguém ainda em nossa casa há de começar nunca as coisas pelo teto: começar as coisas pelo teto é o mesmo que eliminar o tempo que se levaria para erguer os alicerceres e as paredes de uma casa; aqueel q exorbita no uso do tempo, precipitando-se de modo afoito, cheio de pressa e ansiedade, não será jamiass recompensado, pois só a justa medida do tempo dá a justa natureza das coisas, não bebendo do vinho quem esvazia num só gole a taça cheia; mas fica a salvo do malogro e livre da decepção quem alcançou aquele equilíbrio, é no manjeo mágico de uma balançaque está guardada toda a matemática dos sábios, num dos pratos a massa tosca, modelável, no outro, a quantidade de tempo a exigir de cada um o requinte do cálculo, o olhar pronto, a intervenção ágil ao mais sutil desnível; são sábias as mãos rudes do peixeiro pesando sua pesca de cheiro forte: firmez, controladas, arrancam de dois pratos pendentes, através do cálculo conciso, o repouso absoluto, a imobilidade e sua perfeição; só chega a este raro resultado aquele que não deixa que um tremos maligno tome conta de suas mãos, e nem que esse tremos suba corrompendo a santa força dos braços, e nem circule e se estande pelas áreas limpas do corpo, e nem intumesçade pestilências a cabeça, cobrindo os olhos de alvoroço e muitas trevas; não é na bigorna que calçamos os estribos, nem inflamável a fibra com que tecemos as tranças de nossas rédeas, pode responder a que parte vai quem monta, por que é célere, um potro xucro? o mundo das paixões é o mundo do desequilíbrio, é contra ele que devemos esticar o arame das nossas cercas, e com as farpas de tantas fiadas tecer um crivo estreito, e sobre este crivo emaranhar uma sebe viva, cerrada e pujante, que divida e proteja a luz calma e clara da nossa casa, que cubra e esconda dos nossos olhos as trevas que ardem do outro lado, e nenhum entre nós há de transgredir essa divisa, nenhum entre nós há de estender sobre ela sequer a vista, nenhum entre nós há de cair jamais na fervura desta caldeira insana, onde uma química frívola tenta dissolver e recriar o tempo; não se profana impunentemente ao tempo a substância q só ele pode empregar nas transformações, não lança contra ele o desafio quem nãoreceba de voltao golpe implacável do seu castigo; ai daquele que brinca com fogo: terá as mãos cheias de cinza; ai daquele que se deixa arrastar pelo calor de tanta chama: terá a insônia como estigma; ai daquele que deita as costas nas achas dessa lenha escusa: há de purgar todos os dias; ai daquele que cair e nessa queda se largar: há de arder em carne viva; ai daqueel que queima a garganta com tanto grito: será escutado por seus gemidos; ai daquele que se antecipa nos processos das mudanças: terá as mãos cheias de sangue; ai daquele, mais lascivo, que tudo quer ver e sentir de moso intenso: terá as mãos cheias de geso, ou pó de osso, de um branco frio, ou quem sabe sepulcral, mas sempre a negação de tanta intensidade e tantas cores: acaba por nada ver, de tanto que quer ver; acaba por nada sentir, de tanto que quer sentir; acaba por só expiar, de tanto que quer viver; cuidem-se os apaixonados, afastando dos olhos a poeira ruiva que lher turva a vista, arrancando dos ouvidos os escaravelhos que provocam turbihões confusos, expurgando do humor das glândulas o visgo peçonhento e maldito; erguer uma cerca ou guardar simplesmente o corpo , são estes os artifícios que devemos usar para impedir que as trevas de um ladoinvadam e contaminem a luz do outro, afinal, que força tem o redemoinho que varre o chão e rodopia doidamente e ronda a casa feito fantasma, se não expomos nossos olhos à sua poeira? é através do recolhimento que escapamos ao perigodas paixões, mas ninguém no seu entendimento há de achar que devamos sempre cruzar os braços, pois em terras ociosas é que viceja a erva daninha: ninguém em nossa casa há de cruzar os braços quando existe a terra para lavrar, ninguém em nossa casa há de cruzar os braços quando existe a parede para erguer, ninguém ainda em nossa casa há de cruzar os braços quando existe o irmão para socorrer; caprichoso como uma criança, não se deve contudo retrair-se no trato do tempo, bastando que sejamos humildes e dóceis diante de sua vontade, abstendo-nos de agir quando ele exigir de nós a contemplação, e só agirmos quando ele exigir de nós a ação, que o tempo sabe ser bom, o tempo é largo, o tempo é grande, o tempo é generoso, o tempo é farto, é sempre abundante em suas entregas: amaina nossas aflições, dilui a tensão dos preocupados, suspende a dor aos atordoados, traz a luz aos que vivem nas trevas, o ânimo aos indiferentes, o conforto aos que se lamentam, a alegria aos homens tristes, o consolo aos desamparados, o relaxamento aos que de contorcem, a serenidade aos inquietos, o repouco aos sem sossego, a paz aos intranqüilos, a humildade as almas secas; satisfaz os apetites moderandos, sacia a sede aos sedentos, a fome aos famintos, dá a seiva aos que necessitam dela, é capaz ainda de distrair a todos com os seus brinquedos; em tudo ele nos atende, mas as dores da nossa vontade só chegarão ao santo alívio seguindo esta lei inexorável: a obediência absoluta à soberania incontestável do tempo, , não se erguendo jamais o gesto este culto raro; é através da paciência que nos purificamos, em águas mansas é que devemos nos banhar, encharcando nossos corpos de instantes apaziguados, fruindo religiosamente a embriagez da espera no consumo sem descanço desse fruto universal, inesgotável, sorendo até a exaustão o caldo contido em cada bago, pois só nesse exercício é que amadurecemos, construindo com disciplina a nossa própria imortalidade, forjando, se formos sábios, um paraíso de brandas fantasias onde seria um reino penoso de expectativa e suas dores; na doçura da velhice está a sabedoria, e, nesta mesa, na cadeira vazia da outra cabeceira, está o exemplo: é na memória do avô que dormem as nossas raízes, no ansião que se alimentava de água e sal para nos prover de um verbo limpo, no ancião cujo anseio mineral do pensamento não se perturbava nunca com as convulsões da natureza; nenehum entre nós há de apagar da memória a a formosa sensibilidade dos seus traços, nenhum entre nós ha de apagar da memória sua descarnada discrição ao ruminar o tempo em suas andanças pela casa; nenhum entre nós há de apagar da memória suas delicadas bontinas de pelica, o ranger das tábuas nos corredores, menos ainda os passos compassados vagarosos, que só se detinham quando o avô, com dois dedos no bolso do colete, puxava suavemente o relógio até a palma, deitando, como quem ergue uma prece , o olhar calmo sobre as horas; cultivada com zelo pelos nosso ancestrais, a paciência há de ser a primeira lei desta casa, a viga austera que faz o suporte das nossas adversidades e o suporte das nossas esperas, por isso é que digo que não há lugar para a blasfêia em nossa casa, nem pelo dia feliz que custa a vir, nem pelo dia funesto que súbito se precipita nem pelas chuvas que tardam mas sempre vêm nem pelas secas bravas que incendeiam nossas colheitas; não haverá blasfêmia por ocasião de outros reverses, se as crias não vingam, se a rês definha, se os ovos goram, se os frutos mirram, se a terra lerda, se a semente não germina, se as espigas não embucham, se o cacho tomba, se o milho não grana, se os grãos caruncham, se a lavoura prageja, se se fazem pecas as plantações, se desabam sobre os campos as nuvens vorazes dos gafanhotos, se raiva a tempestade devastadora sobre o trabalho da família; e quando acontece um dia de um sopro pestileno, vazando nosso limites tão bem vedados, chegar até as cercanias da moradia, insinuando-se sorrateiramente pelas frestas das nossas portas e janelas, alcançando um mebro desprevinido da família, mão alguma em nossa casa há de fechar-se em punho contra o irmão acometido: os olhos de cada um, mais doces do que alguma vez ja foram, serão para o irmão exasperado, e a mão benigna de cada um será para este irmão que necessita dela, e o olfato de cada um será para respirar, deste irmão, seu cheiro virulento, e a brandura do coração de cada um, para ungir a sua ferida, e os lábios para beijar ternamente seus cabelos transtornados, que o amor na família é a suprema forma da paciência; o pai e a mãe, os pais e os filhos, o irmão e a irmã: na união da família está o acabamento dos nossos princípios: e, circunstanciamente, entre posturas mais urgentes, cada um deve sentar-se num banco, plantar bem um dos pés no chão, curvar a espinha, fincar o cotovelo do braço no joelho, e, depois, na altura do queixo, apoiar a cabeça no dorso da mão, e com os olhos amenos assistir ao movimento do sol e das chuvas e do vento, e com os mesmos olhos amenos assistir à manipullação misteriosa de outras ferramentas que o tempo habilmente emprega em suas transformações, não questionando jamais sobre seus desígnios insondáveis, sinuosos, como não se questionam nos puros planos das planícies as trilhas tortuosas, debaixo dos cascos, traçadas nos pastos pelos rebanhos: que o gado sempre vai ao cocho, o gado sempre vai ao poço; hão de ser esses, nos seu fundamento, os modos da família: baldrames bem travados, paredes bem amarradas, um teto bem suportado; a paciência é a virtude das virtudes, não e sábio quem se desespera, é insensato quem se submete." E o pai à cabeceira fez a pausa de costume, curta, densa, para que medissemos em silêncio a magestade rústica da sua postura: o peito de madeira debaixo de um algodão grosso e limpo, o pescoço sólido sustentando uma cabeça grave, e as mãos de dorso largo prendendo firmes a quina da mesa como se prendessem a barra de um púlpito; e apoximando depois o bico de luz que deitava num lastro de cobre mais intenso em sua testa, e abrindo com os dedos maciços a velha brochura, onde ele, numa caligrafia grande, angulosa, dura, trazia textos compilados, o pai, ao ler, não perdia nunca a solenidade: "Era uma vez um faminto".
diz tudo, pra mim.
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